Slavoj Žižek (1949) é um filósofo esloveno cujas influências principais são
os pensamentos de Karl Marx, Jacques Lacan e Hegel. Atua prin- cipalmente nos
campos da teoria política, análise cultural e cine- matográfica e teoria
psicanalítica. Em 1990, foi candidato à presidência da Eslovênia. É professor
da Universidade de Liubliana e professor convidado da Universidade de Vermont
(EUA).
O que dizer sobre dois dias de conversa com o incrível filósofo esloveno
Slavoj Žižek? Tomei contato com ele ainda na época da minha graduação em
psicologia. Foi amor à primeira lida! Algum tempo depois de ter lido alguns de
seus textos publicados ainda em inglês, fui parar na Eslovênia atrás do que
podia achar sobre ele — livros, referências, palavras — sem imaginar que,
mais alguns anos adiante, ele me concederia uma entrevista. Por ocasião do
lançamento de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo Editorial, 2012) e da tradução
de Menos que nada (no prelo, Boitempo), tivemos a
chance e o prazer de conversar com aquele que, ainda hoje, é uma de minhas
referencias bibliográficas.
Na entrevista exclusiva
que publicamos aqui, eu e Rogério Bettoni, um de seus tradutores, tentamos
seguir o raciocínio nada linear de Žižek. Em meio a piadas e momentos de
extrema seriedade, abordamos assuntos dos mais variados — as meninas do Pussy
Riot, a leitura do movimento extremista religioso que toma conta do mundo hoje,
a psicanálise lacaniana e suas instituições, as novelas brasileiras… Tentamos
aqui sintetizar o que ouvimos e transmitir o estilo de Žižek. Agradecemos
infinitamente ao esloveno por permitir que publicássemos nossas conversas por
Skype. Esperamos que apreciem.
— Bernardo Malamut
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[Rogério] Nos seus escritos, você usa uma série de referências que
aparentemente se contradizem. Você consegue falar sobre cultura pop e pessoas
como David Guetta e Rammstein ao mesmo tempo em que cita e trata de G. K.
Chesterton e Alain Badiou, por exemplo. O que significa pra você toda essa
mixórdia?
Talvez você se surpreenda ou eu esteja sendo inconsistente, mas no fundo
sou um cara muito elitista. Posso até falar sobre David Guetta, mas nunca ouvi
sequer uma música dele. E talvez você também fique surpreso com o que andei
ouvindo nos últimos meses: Arnold Schoenberg. Escrevi uma análise de 50 páginas
sobre a ópera Erwartung, sua ligação com a
psicanálise etc. E talvez isso te surpreenda ainda mais: adoro as óperas do
compositor russo Modest Mussorgsky, ele é muito subversivo. Ser marginal hoje em dia faz parte da cultura dominante, não é algo
automaticamente subversivo.
O meu problema com a música popular, na verdade o problema da minha geração —
de quem já está nos seus 60 e poucos anos —, é este: o que há de bom no
rock aconteceu de 1965 a 1975. Sou conservador quanto a isso. Mas quando falo
de David Guetta etc., que fique claro: não estou fazendo juízos, não se trata
de uma análise artística imanente — exploro brutalmente esses fenômenos
para fazer uma análise ideológica, mas muito raramente. Nisso sou modesto… Veja
todo esse meu papo-furado sobre cinema [risos]. Quando eu falo
sobre Hitchcock, Tarkovsky, Kieslowski, acho que faço uma verdadeira análise
imanente. Por exemplo, a Boitempo publicou agora meu texto sobre Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o que pra mim é só uma análise político-social. Na
maioria dos casos, quando me refiro à cultura popular, não quer dizer que eu
goste, mas acho que na cultura popular e em Hollywood nós temos um acesso mais
direto ao que somos hoje, à nossa constelação ideológica. E acrescento: acho
que, muitas vezes, obras de arte cinematográficas e literárias que se dizem
vanguardistas, não comerciais, podem ser estúpidas e chatíssimas, escritas por
quem não sabe contar uma história. Ser marginal hoje em dia faz parte da
cultura dominante, não é algo automaticamente subversivo.
Não me comparo a Hegel, mas a mesma coisa que você disse sobre mim, e
concordo, foi dita quando Hegel publicou Fenomenologia do Espírito.
A principal crítica era que o livro era confuso, ninguém entendia se era sobre
percepção, Antígona, isso ou aquilo. É claro,
o nível do material deixa uma confusão, mas os leitores precisam estar atentos
ao meu objetivo — ou seja, a constelação ideológica da qual fazemos parte.
Mas veja só, estou meio cansado disso tudo. Estou voltando a Hegel, como
em Menos que nada, e escrevendo sobre o que chamam de
depressão pós-coito. E estou escrevendo um livro de umas 150 páginas, bem
tradicional, sobre o problema ontológico básico de que estamos saindo da
abordagem transcendental. Quentin Meillassoux fala disso em Après la finitude, e eu e meus amigos eslovenos, Alenka
Zupančič e Mladen Dolar, estamos voltando à filosofia mais pura. Estou com 63,
tenho diabetes e toda vez que passo diante de um cemitério, me pergunto: “Será
que o jazigo é barato, será que paro e compro um?” [risos].
E descobri que se tiver de fazer alguma coisa séria, preciso fazer agora, não
tenho mais tempo.
[Bernardo] Você falou sobre cultura pop e disse que é difícil ser marginal
hoje em dia. É como se você usasse isso por estar inserido na cultura, para
atingir as pessoas de uma maneira mais fácil e traduzir o que quer dizer. Então
como é possível ser marginal hoje em dia?
Boa pergunta. Acho que é muito difícil ser marginal. Nós vivemos numa época
paradoxal, e pensei nisso em Londres, sobre o que significa ser marginal e
subversivo na pintura e na escultura, por exemplo. Hoje, fazer parte da cultura
dominante é ser extremado. Tenho um amigo londrino que está pintando e queria
fazer uma exposição na Saatchi, uma grande galeria que apoia os marginais, e
disseram pra ele: “mas isso é só pintura!”. O que está em voga hoje, em
Londres, é o que envolve escândalo: urinar numa pintura ou numa estátua de
Jesus Cristo, fazer um vídeo de uma colonoscopia… O próprio sistema demanda
esse tipo de transgressão. Por outro lado, é interessante ver meu conflito nos
Estados Unidos com Judith Butler, que gosta dessa coisa do marginal, da
resistência, de resistir ao mainstream patriarcal.
Ela gosta de nos citar, lacanianos, principalmente em relação ao Nome-do-Pai,
como se fôssemos do mainstream. Mas se
observarmos a instituição acadêmica como campo de poder, veremos que Judith é
extremamente poderosa — é capaz de nomear gente, de fazer com que livros
sejam publicados, enquanto nós, lacanianos, somos criticados como teóricos do
patriarcal etc. No entanto, nós somos absolutamente desprovidos de poder
naquilo que realmente importa, ou seja, empregar pessoas, conseguir
financiamentos, bolsas de estudo, publicações… Veja bem, estou em Vermont como
convidado de dois amigos, Todd McGowan e Hilary Nerone, que comandam um pequeno
departamento de cinema e estudos culturais, e esse é o único departamento no
país inteiro dirigido por lacanianos. Ser marginal não quer dizer que se é
marginal, mas sim uma maneira de determinar sua posição, que na verdade pode
ser bem central. Gosto de citar Chesterton nesse ponto, ele diz que a regra
hoje em dia é ser heterodoxo, quer dizer, a posição verdadeiramente marginal é
a ortodoxia. Vivemos numa época muito estranha.
[Rogério] E a banda punk Pussy Riot? Recentemente as integrantes foram
presas na Rússia. Uma delas, inclusive, Yekaterina, disse que estava lendo seus
livros na prisão. O que esse episódio nos diz sobre esse momento estranho em
que vivemos?
Acho que esse episódio
nos diz mais sobre o Ocidente do que sobre a Rússia. Não sei muito bem como é
no Brasil, mas vejo esse fenômeno estranho na Europa Ocidental: houve muito
pouca compaixão por elas. A atitude predominante na Europa Ocidental foi: “Ok, não
precisava de uma condenação tão dura, mas elas provocaram etc.” Sabe o que
mudou? Conversei com alguns jornalistas na Europa. No início elas foram
exaltadas pela mídia, grandes artistas como Madonna as apoiaram, porque se
pensava que essa era simplesmente a história comum de liberais democratas
resistindo a Putin e ao regime, até que aos poucos as coisas ficaram claras.
Estive em Moscou com os amigos delas e são todos radicais de esquerda, são
anticapitalistas, duvidam da democracia tal como a nossa. Na igreja, elas
protestaram contra Putin, não contra a religião. A frase de protesto era
direcionada a Kirill, líder da Igreja Ortodoxa: “Kirill, acredite mais em Deus
e menos em Putin”. Putin disse recentemente que a separação entre Igreja e
Estado é uma atitude velha, do século XIX, ele quer realmente manter uma Igreja
Ortodoxa dentro de uma Igreja do Estado, e por isso ele dificulta tanto a
organização de outras igrejas. Elas têm meu apoio porque, pessoalmente, sou um
tipo de fascista no sentido estrito, detesto caos etc. E numa situação como
essa, a provocação funcionou. Quando as pessoas me disseram, “Ah, foi uma
provocação”, eu disse “Foda-se!”, se elas tivessem distribuído panfletinhos na
Igreja criticando Putin por não ser democrático, nenhum de nós teria ouvido
falar delas, e o acontecimento ressoou no mundo inteiro. A mídia ocidental
mostrou que há velhos comunistas e nacionalistas a favor de Putin e apenas os
liberais intelectualizados ocidentais contra Putin — mentira, temos
círculos artísticos e intelectuais muito fortes de esquerda que deixaram de se
opor a Putin. Além disso, elas não são rebeldes sem causa, elas estudaram
filosofia. Tentei visitá-las no último dia em que estive na Rússia, mas não
consegui, o tratamento que dão a elas é mesmo cruel. Nadezhda, meu Deus, tem
uma filha e não pôde, durante três ou quatro meses, nem falar com ela ou com o
marido.
Mas veja, há outro caso
na Rússia do que entendo como capitalismo pós-político e pós-democrático: na
sua apatia, as pessoas simplesmente parecem aceitar essa nova forma de
autoritarismo que não é a velha forma conservadora, mas sim um totalitarismo
permissivo. Você pode fazer sexo, usar drogas, tudo é liberal em questões
privadas, mas ao mesmo tempo há um movimento explícito rumo a uma era pós-democrática.
Há alguns anos, conversei com o conselheiro de Putin (esqueci o nome dele, mas
não importa). Ele me disse que até os atos falhos de Putin são planejados para
testar o terreno. Recentemente, ele disse em uma entrevista que para fazer
coisas realmente boas para um país é preciso ter a posição de um monarca com
poder real, pois quando se é eleito é preciso preocupar-se o tempo todo com o
apoio do povo.
Acho uma obscenidade,
por exemplo, a União Europeia ter ganhado o Prêmio Nobel da Paz. Não acredito
num mundo em que a escolha seja entre Estados Unidos ou China. A Europa está
realmente se desintegrando, ela hoje é o modelo de uma inércia depressiva. Veja
bem, talvez isso soe estranho por eu ser marxista, mas Lênin me entenderia:
temos a impressão de que há na Europa uma elite da classe dominante que não
sabe muito bem do seu papel, que está perdendo a habilidade de governar.
[Bernardo] Eu queria saber duas coisas: uma diz respeito à sua opinião
sobre Foucault e sua análise do poder, uma vez que disse sobre Foucault
representar um pouco do que vivemos hoje. A outra é sobre religião: estamos
passando por um momento preocupante no Brasil, que é o crescimento das igrejas
evangélicas. Na universidade, por exemplo, vemos grande parte de alunas de
psicologia defendendo ideias religiosas conservadoras, como a proibição do sexo
antes do casamento —
Mas você consegue dizer se elas realmente praticam isso? Afinal, o Brasil
supostamente não seria o maior representante da promiscuidade? [risos]
[Bernardo] Sim, mas há um paradoxo nisso. O que temos visto nos alunos que
entram agora na universidade, por exemplo, é um discurso cada vez mais
religioso. Enquanto ensinamos psicanálise, as pessoas estão escrevendo Jesus no
caderno…
E a classe social, isso
acontece entre os ricos, pobres…?
[Bernardo] Entre os mais pobres.
É isso o que me
preocupa. Isso está acontecendo em todos os lugares, é algo que os liberais não
conseguem enfrentar, e daí vem a minha dificuldade com o politicamente correto,
o multiculturalismo etc. Nos Estados Unidos, fazer parte dos “esclarecidos”
pelos direitos dos homossexuais, do multiculturalismo etc., tem uma dimensão de
classe infeliz, é uma maneira confortável de parecer esquerdista. Mas quando as
pessoas falam em patriarcado, violência contra a mulher, estupro, elas estão se
referindo aos pobres, e essa divisão entre lutas culturais emancipatórias e
questões de classe econômica talvez seja a maior tragédia da Esquerda nas
últimas décadas. Não culpo os pobres, mas sim essa elite liberal com a luta
pelos direitos dos homossexuais, a tolerância, e repito — tudo isso tem
uma dimensão de classe.
Acho que o advento do fundamentalismo hoje em dia não é algo que vem de
antigas tradições, mas sim que pertence à própria dinâmica do
capitalismo. Não tenho compaixão pelos muçulmanos fundamentalistas, mas
veja só, será que temos ciência do quanto essas pessoas são marginais? A grande
maioria dos muçulmanos é relativamente tolerante. Se vemos um grupo atacando,
digamos, a Embaixada dos Estados Unidos, imediatamente ele é associado aos
representantes do Islã — então por que, por exemplo, fundamentalistas
norte-americanos não são vistos da mesma maneira? Dados oficiais do FBI
publicados no The New York Times mostram que
há 2 milhões de norte-americanos sendo observados como fundamentalistas da
Direita cristã potencialmente perigosos… Precisamos parar de estabelecer essa
relação direta do fundamentalismo com o Islã, há fundamentalistas nos Estados
Unidos, na Noruega, na Europa Oriental, a Hungria vive um pesadelo agora, isso
sem falar na Índia, onde o fundamentalismo é muito mais forte entre os hindus.
Não estou defendendo o Islã; a questão é: por que o capitalismo global atual
gera e alimenta esse fundamentalismo?
Como já coloquei em alguns livros, não acho que o verdadeiro conflito seja
entre o fundamentalismo e a permissividade multicultural dos liberais, pois as
duas coisas fazem parte do mesmo círculo. Esse tipo de fundamentalismo é uma
resposta ao que alguns sociólogos chamam de desintegração do espaço público. O
capitalismo segue rumo a essa dimensão privada mesmo que o espaço pareça ser
público. Eu daria o exemplo de que tudo está no YouTube hoje em dia, e odeio
isso, mas não posso repetir o mesmo discurso. Um amigo me disse recentemente
que a última tendência pornográfica na Europa é o sexo em público. Não em um
bar etc., mas em um ônibus lotado, por exemplo, duas pessoas começam a transar
e a reação é horrível…O segredo é mudar as
relações político-sociais capitalistas para que elas não produzam mais o
fundamentalismo.As pessoas primeiro
olham surpresas e depois acabam ignorando a cena. É por isso que digo que a
promiscuidade na internet, as pessoas que se exibem nuas online etc., não são o velho e bom gesto de exibicionismo de abrir
seu casaco e tal. Aqui você realmente se dirige ao público. Já na internet você
pode estar em contato com milhares de pessoas, mas continua na sua bolha, no
seu espaço privado. E observamos isso claramente nos Estados Unidos.
Sabe quando Lacan fala
de sua definição inicial dos sintomas psicóticos e paranoicos, de como o que é “forcluído”
do simbólico retorna no real? A expansão do próprio espaço público simbólico,
ela retorna no real na forma de todo esse fundamentalismo… Então é fundamental
encará-lo não como um poder autóctone, mas como um fenômeno de reação, como
diria Nietzsche. O segredo não é combatê-lo, mas sim mudar as relações
político-sociais capitalistas para que elas não o produzam mais.
Falando sobre o Brasil,
as pessoas me acusam de idealizar as favelas, mas não é isso. Alguns amigos me
disseram que vocês falam em “capitalismo da favela”, ou seja, que nas favelas
não existe Lei, é só pobreza, mas por vezes também funciona como um capitalismo
dinâmico. Não tenho ilusões sobre as favelas, mas me interessaria muito algum
tipo de estudo que não essa coisa humanitária de “oh, eles não têm água, oh, as
crianças são exploradas”… Acho que o Brasil é um dos únicos países que conheço
que não esconde as favelas… Em Buenos Aires, por exemplo, elas não são vistas.
Não digo que elas formem um magnífico cenário hollywoodiano, mas pelo menos é
melhor que sejam vistas! E me pergunto: como funciona a vida social nas
favelas? Há milhares de pessoas amontoadas, então, além dos bandidos e comunidades
religiosas, tem de haver um tipo de rede social que faça a favela funcionar.
Seria bom ler algum estudo desse tipo.
[Bernardo] Sim, é verdade que elas não são escondidas no Rio, que fazem
parte da vida na cidade, mas veja só, por mais que se negue, nós observamos um
tipo de “limpeza social” quando uma pessoa de fora, uma figura pública, chega
ao Rio de Janeiro — por exemplo, eles tiram os pobres das ruas e os levam
para uma cidade próxima.
Sim, mas e a questão do
turismo pelas favelas, soube que isso é feito em São Paulo… E é algo real ou
encenado?
[Bernardo] É encenado… E no Rio também, as pessoas descobriram que talvez
fosse rentável promover esse tipo de turismo, já que as pessoas de fora são
curiosas em relação às favelas.
Mas voltemos à outra pergunta, sobre Foucault. Eu gosto de muita coisa
nele, Arqueologia do saber é meu livro predileto dele,
uma obra-prima. Mas minha dificuldade com ele é outra. Talvez eu tenha lido
Foucault de uma maneira superficial, mas em Vigiar e punir e
no primeiro volume de História da sexualidade,
ele tem essa visão de que cada resistência faz parte do sistema, de que a
sexualidade não é oprimida, mas engendrada, gerada pela opressão, pelo poder.
Para mim, não está claro como é que ele passa disso para a posição de seus
últimos dois livros, nos quais temos núcleos de resistência da subjetividade.
Tenho um problema parecido com Judith Butler, por exemplo. Para ela nós
resistimos, mudamos a regra, ironicamente destruímos o sistema etc. Mas a
pressuposição é de que o sistema existe para ficar, nós podemos apenas
construir ilhas de resistência aqui e ali… Isso também me gerou alguns
problemas com Alain Badiou, que hoje gosta de enfatizar essa política
antiestatal, uma política autêntica, afastada do Estado. Temos esses levantes
na Europa Ocidental, demonstrações de revolta aqui e ali, a ideia de que a
Esquerda deve triunfar. Durante décadas a Esquerda disse que o povo europeu
vivia numa riqueza relativa, mas que logo presenciaria a crise, o caos etc.
Agora que passamos por uma espécie de crise — talvez soe extremamente
simplista o que vou dizer, mas é algo muito verdadeiro —, a Esquerda
literalmente não sabe o que fazer. Por exemplo, estive na Grécia e perguntei
para as pessoas: “Então vocês são contra essas medidas austeras, mas afinal o
que querem realmente? Apenas um capitalismo mais keynesiano e solidário, em que
o Estado intervém na saúde etc., ou uma nacionalização maior?”. Ninguém soube
responder, disseram que era cedo demais para perguntar isso. Mas como é cedo demais?
Faltava apenas uma semana para as eleições! E claro, a mídia me atacou como se
eu fosse uma espécie de terrorista protostalinista. Eu não estava dizendo que
precisamos de um Estado totalitário, mas sim questionando como fazer tudo isso
sem se tornar autoritário, entende? As pessoas têm um momento de revolta, e
depois há um vazio.
[Bernardo] E qual o papel do cinema pra você?
A primeira questão que devemos fazer é: o cinema continua sendo “o” meio?
Há bons argumentos, não terei tempo de elencar todos para corroborar que o
papel do cinema seja esse aparato ideológico hegemônico, quer dizer, se
quisermos saber o que sonha uma sociedade, vejamos seus filmes! Mas acho que o
novo fenômeno no mundo inteiro são as séries de TV, e não no sentido, como
diria Hegel, de que o espírito do mundo está passando do cinema para os
seriados. Não. O motivo que desperta meu interesse pelo cinema é exatamente
este: sempre digo que a ideologia não é apenas a explicitação de regras; ela é
mais que isso, envolve também todas aquelas formas secretas de transgredir as
regras explícitas. A ideologia não é apenas o que a sociedade quer de nós, mas
sim o nosso sonho de como nos libertar dela. Nesse filme mais recente que fiz
com Sophie Fiennes, Pervert’s Guide to Ideology,
eu disse que precisamos aprender a censurar nossos sonhos. Em Hollywood nós
temos precisamente modelos de sonhos críticos, mas o que me interessa é o
sonhar que permanece dentro da ideologia. É por isso que, apesar de não gostar,
eu achei tão interessante o último Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge,
ele é ambíguo — basicamente muito reacionário, mas também há traços de
algo que não se encaixa na ideologia.
Voltando, então: hoje Hollywood não nos dá apenas o conformismo, mas também
uma maneira falsa de romper com o conformismo, e por isso acho que deve ser
levada muito a sério. Talvez eu seja fanático demais nesse ponto, mas nós
deveríamos prestar atenção justamente nos filmes que parecem críticos
superficialmente. Meu maior exemplo disso éAvatar. James
Cameron, pra mim, é o pior de todos. Muita gente inclusive o chama de “maior
marxista de Hollywood”, mas isso é o que parece — por trás dessa leitura
primitiva e anti-imperialista de Avatar, nós
encontramos um mito bem reacionário. E esse é o mesmo problema que eu tenho com
Oliver Stone. Se pegarmos, por exemplo, o primeiro Wall Street, encontramos por trás desse tipo de
capitalismo antifinanceiro uma história edípica comum e chatíssima — a
separação entre o filho e o pai bandido, Michael Douglas, e o pai mocinho,
Martin Sheen, e o que é ainda pior, a única pessoa carismática e com um charme
libidinal é o bandido, Michael Douglas. E ainda têm aquelas frases do filme:
“Se quiser um amigo, arrume um cachorro” etc. Isso é o que filme tem de mais
falso, e é por isso que, para provocar alguns amigos na minha loucura, tentei
recuperar coisas como 24 horas, ou Os 300 de Esparta, que a maioria das pessoas descartava
como fascista, por exemplo. Gosto do final da última temporada de 24 horas, que terminou com um impasse ético: Jack Bauer
tinha duas opções e entra em colapso. Por trás de toda essa ação há um
diagnóstico bastante pessimista e muito mais honesto do que esses filmes
reanimadores da Esquerda hollywoodiana, como Dossiê Pelicano e Todos os homens do Presidente. E isso é muito
importante hoje, não aceitar essa abordagem liberal padrão de quem são os
mocinhos e os bandidos. Também gosto de acompanhar o cinema de outros países,
mas não acho que temos de fetichizar esses filmes — um filme não será bom
só porque foi feito em um país pobre e seja aparentemente autêntico.
Existe um filme do chinês Jia Zhangke, Em Busca da Vida,
sobre um homem que vai atrás da antiga esposa e uma mulher que procura seu
marido em uma daquelas cidades tomadas pelas águas da represa Três Gargantas
— é um retrato belíssimo e desesperado da vida comum no que é a China
hoje. É como se fosse um Antonioni reinventado na China. E ele ocupa um lugar
que eu gosto: não está integrado ao mecanismo do Estado, mas também não é
radicalmente dissidente. O engraçado é que a China está praticamente se
tornando uma Hollywood de uma maneira que eu gosto, veja só esses filmes sobre
os grandes guerreiros chineses, como Herói ou O Clã das Adagas Voadoras.
[Rogério] Quero fazer uma pergunta delicada sobre Jacques-Alain Miller.
Pessoalmente acho que ele exerce uma espécie de manipulação do conhecimento,
determinando o que deve e o que não deve ser publicado dos seminários de Lacan
e também sobre os seminários. Quero saber o que você acha dessa postura e qual
a sua relação com Miller.
Participei do círculo de Miller há uns trinta anos. Daí houve uma série de
mal-entendidos, alguns narcisistas, outros não. Primeiro, eu era um autor
relativamente jovem e queria publicar minha tese, O mais sublime dos histéricos, e os lacanianos não se
interessaram etc. Segundo, ele queria me forçar mais na direção de ser
analista. Ainda que ele tratasse de filosofia, suas ideias eram muito mais
kantianas que hegelianas. Também havia o fato de ele não gostar da minha
abordagem à cultura popular, e é engraçado porque, nos últimos anos, ele mudou
totalmente de opinião e começou a escrever análises populares, mais políticas etc.
E infelizmente houve a última ruptura, política. Eu diria que Miller é
centro-liberal, até centro-direitista. Ele publica com certa regularidade no
semanário Le point e no diário Le Figaro, que são centro-direitistas. Em termos mais
simples, como coloquei no último capítulo de Menos que nada, acho
que ele adotou e tenta reler em Lacan um tipo de saber cínico e tolerante, e
chego a citar o que considero ser de um autoritarismo bastante cínico. Em
determinado momento, ele adora essa típica estratégia conservadora de que
“embora saibamos que as aparências são falsas, devemos respeitá-las; se
perturbarmos as aparências, talvez haja uma catástrofe” etc. Não acho que esse
tipo de saber cínico seja a verdadeira posição de Lacan.
Então, em primeiro lugar, preciso dizer que ainda o aprecio. Ele foi o
responsável por tornar Lacan acessível para mim — o início dos anos 1980
foi uma época maravilhosa, nós sentávamos toda semana durante algumas horas e
entrávamos nos detalhes dos textos de Lacan. Miller tem essa capacidade
absolutamente cirúrgica de clarificar o nada que entendemos ao olhar uma página
de Lacan pela primeira vez. Mas depois acabei descobrindo outros textos sobre
Lacan, de outros pesquisadores e outras escolas, que também eram excelentes.
Dois nomes que quero mencionar: François Balmès, que escreveu sobre Lacan e
Heidegger e tem vários outros textos que cito bastante, e Guy Le Gaufey, que
escreveu um livro maravilhoso, Le Pastout de Lacan,
sobre o não-Todo de Lacan. E veja o que considero ser o sinal de que a
orientação de Miller deixou de ser produtiva: só ele publica. Uma das coisas
que me fizeram sair do grupo de millerianos foi que, nos últimos anos com eles,
havia uma espécie de proibição verbal de que não deveríamos publicar livros:
devíamos era fazer algumas intervenções aqui e ali e depois publicar a
transcrição. Conheço pessoas como a matemática Nataly Sharo, que acho que ainda
está com ele. Ela terminou uma tese sobre Lacan e matemática e teve tanto medo
de publicar que acabou fazendo em segredo com uma editora menor. Mas o que me
incomoda um pouco no Miller é como ele muda sua posição nas questões políticas.
[Rogério] Interessante você dizer isso, porque Belo Horizonte é a
segunda cidade da América Latina com o maior número de lacanianos, mais propriamente
millerianos. E sinto que aqui as pessoas levam a ferro e fogo o que ele diz
— veja bem, sou tradutor, não psicanalista, mas tenho um contato muito
grande com analistas que trazem isso pra mim. Se hoje Miller diz “sigam para
cá”, todos os analistas vão atrás; amanhã ele diz “vamos para lá”, então todos
os analistas mudam de direção.
Eu me livrei dessa transferência com ele, primeiro porque, não sei se você
se lembra do escândalo que houve com o seminário A transferência, quando os inimigos publicaram o
maravilhoso Le transfert dans tous ses errata,
citando literalmente centenas de erros no texto publicado por Miller. Ele
reconheceu isso em silêncio porque, durante alguns anos, proibiu a reimpressão
da sua primeira edição, até que surgiu uma nova versão na qual, sem agradecer a
eles, a maioria das críticas foi adotada. Ou, por exemplo, veja o que aconteceu
com o seminário sobre Joyce, O sinthoma. A regra
era publicar apenas o texto, sem introdução, posfácio ou notas. Até que do
nada, nesse seminário, Miller acrescentou umas cem páginas de posfácio
recontando todas as histórias etc. E ainda há o papel social dele — até
cerca de dez ou quinze anos atrás, ele não fazia intervenções públicas, ou
quase nunca: queria ser um lacaniano isolado. Até que de repente, e de uma
maneira muito infeliz, ele começou a participar da vida social. Os melhores
amigos dele hoje são Phillipe Sollers e Bernard-Henri Levy. Quando Levy se
manifestou em 2011 para organizar um bombardeio à Líbia, os lacanianos
millerianos escreveram um texto apoiando publicamente seu intervencionismo
militar, dizendo que essa era a política do “ne pas céder sur son désir”, de
permanecer fiel ao seu desejo etc. Tudo bem, Miller pode ser bacana, mas não é
perfeito — comete erros brutais, não entende o essencial etc. Quando você
encontra com ele pela primeira vez ou está à distância, ele pode ser bastante
sedutor.
Para mim, o grande problema dele, e eu já sabia disso há mais de 25 anos, é
que ele não lê livros. Ele lê o suplemento literário
do The Times e a New York Review of Books. Por exemplo, nesta última ele descobriu Richard Rorty,
e de repente começou a dizer que a posição de Lacan no Mais, ainda em relação à ética social é parecida
com a de Rorty etc. E para completar, veja bem, não tenho nada contra o poder
ditatorial, mas em vez de ser um bom ditador, ele é um estúpido ditador. Não
sei como é no Brasil, mas sei que nos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e
Itália, ele conseguiu ter a inacreditável capacidade de escolher exatamente as
pessoas erradas para organizar e dirigir o movimento lacaniano. Nos Estados
Unidos, por exemplo, há duas décadas, ele escolheu Ellie Ragland-Sullivan, uma
maluca meio psicótica. Ela entrava em conflito com todo mundo e nada acontecia.
É o mesmo na Inglaterra, e é por isso que os millerianos lá são tão marginais,
até mesmo o maior nome entre eles, Darian Leader, que agora está um pouco
afastado. É o mesmo na Alemanha, onde também nada acontece. E essas mudanças
políticas do Miller também são muito desagradáveis. Veja o que aconteceu com
Élisabeth Roudinesco. Antes ele era ambíguo, e recentemente entrou em um
conflito enorme com ela a respeito da morte de Lacan.
É ridículo, aconteceu
com Franz Kaltenbeck, australiano que mora em Paris. Há vinte anos, quando a
diretiva era “Élisabeth Roudinesco é inimiga”, ele a atacava. Nesse ínterim,
antes do conflito mais recente, houve um momento em que, por conta daquela
briga contra a legalização da análise, eles de repente ficaram amigos. É
ridículo, um péssimo stalinismo. Você acha que está seguindo a diretiva do
grupo, de repente a diretiva muda e você é atacado etc. Minha medida é simples:
quer ser stalinista? Não me interessa. Produz boa teoria? Não acho que ele
esteja produzindo uma boa teoria.
Já escrevi sobre isso, Miller ainda segue essa linha ridícula de que o
jovem e o segundo Lacan era ingênuo, mas que no final Lacan encontrou uma
verdade final. Miller sempre quis definir um ponto final em que Lacan
chegou à verdade. Eu e meu grupo esloveno, Alenka Zupančič e Mladen Dolar,
chegamos à conclusão, depois de anos de leitura, que o apogeu de Lacan
aconteceu mais ou menos entre A lógica da fantasia e Mais, ainda. Ali ele encontrou um impasse. Depois, nos
últimos seis, sete anos, por meio dos nós, aquelas maluquices, ele tenta sair
desse impasse, mas fracassa. Cheguei a citar no final do capítulo sobre o
não-Todo, em Menos que nada, a passagem crucial
em que o próprio Lacan admite isso abertamente, ele diz mais ou menos que
pensava que o nó borromeano daria certo, mas que acabou descobrindo que não,
que ele estava errado. Penso que deveríamos estar abertos a essa constatação.
Vou contar uma história
que pode ser interessante. Catherine Millot, que é íntima de Miller, foi a
última amante oficial de Lacan. Ela estava com Lacan no momento em ele morreu.
Não estou dizendo isso para polemizar, apenas por razões teóricas. Depois que
Lacan morreu, surgiu todo um mito, que obviamente ela alimentou, de que, justo
antes de morrer, Lacan contou a ela uma fórmula secreta, a sabedoria máxima etc.
E todo mundo ficou na expectativa de que ela dissesse que fórmula era essa.
Eu penso da mesma
maneira a respeito dos filósofos. Acho que a grande maioria dos filósofos, nos
últimos anos de vida, ficou presa em uma regressão sem sentido, como Schelling.
Isso não quer dizer que o apogeu de um pensador aconteça quando ele está
prestes a morrer, não é isso. E também não acho que Lacan tenha regredido, mas
apenas que ele estava lutando com um problema sem conseguir resolvê-lo. Minha
leitura, embora arriscada, é esta: se pararmos na produção intelectual de Lacan
mais ou menos em 1973-74, não perdemos nada.
[Rogério] E não seria esse o mesmo problema de Jean-Paul Sartre, por
exemplo? Quando começa a lutar com a razão dialética, ele se perde por
completo.
Concordo totalmente contigo, e nesse sentido estamos indo contra a visão
predominante de que esse segundo Sartre é o bom Sartre marxista ou coisa do
gênero. Não, essa leitura está errada! Talvez possamos imaginar um Sartre
diferente, que prosseguiria nas suas constatações iniciais sem se envolver com
toda a questão marxista. Mas veja só, infelizmente Sartre foi meio esquecido, e
muita gente tem dificuldade de reconhecer isso. Ele ainda é bastante influente,
por exemplo, em toda essa linha compartilhada de maneiras diferentes por
Deleuze e Badiou, essa ideia de não representação da política, de que há uma
espécie de produtividade imediata que acaba sendo tolhida ou oprimida por uma
totalidade edípica etc. Deleuze segue essa abordagem do anti-Édipo e até
menciona Sartre algumas vezes. Não podemos nos esquecer de que o pensamento de
Deleuze começou com a fenomenologia. Até Badiou reconhece essa influência
de Sartre! Ele nunca adotou o estruturalismo, mas naquela época estava mais do
lado de Sartre. Portanto, concordo plenamente que ele abandonou essa
produtividade local e espontânea em oposição a uma organização totalizadora
falha etc. Na verdade, sou ainda mais reacionário: prefiro as primeiras coisas
que Sartre escreveu. Adoro A náusea, a
repugnância, essa experiência brutal do real, e por razões muito pessoais: eu
me sinto exatamente desse jeito. Por isso também adorei Melancolia, do Lars Von Trier: concordo plenamente com
a protagonista, a vida é ruim, repugnante, é bom quando acaba etc. [risos]
[Rogério] Em O ano em que sonhamos perigosamente, você
traz à tona um princípio atribuído a Yahya ibn Ziyad, de que, em última
análise, a escolha do próprio destino depende do poder de cada um. Qual sua
posição sobre isso, nós temos mesmo uma escolha? Temos razão para continuar
resistindo?
Mais uma vez digo que é
por isso que não gosto da fórmula da resistência. Aceitamos que o poder existe,
resistimos e começamos a gozar com a resistência. Acho que é preciso tomar uma
decisão. É claro que agora não podemos deixar de resistir, mas qual é nossa
verdadeira meta? Não gosto da posição crítica que não assume uma
responsabilidade — o Estado existe, nós o criticamos, mas precisamos
manter distância. Nesse sentido, sou muito pragmático: se não há alternativa,
prepare-se para sujar as mãos. Falemos do poder, por exemplo. Eu estava
envolvido numa discussão na Grécia e me disseram que a maior ambição da
Esquerda era tentar tomar o poder. Acho que o sonho secreto da Esquerda radical
nas últimas décadas consistiu no que ela mais temia, a perspectiva real de
tomar o poder. Eles têm medo do poder. Acho que nesse sentido temos de ser
brutais e não ter medo do poder. Eis o motivo do meu conflito com Simon
Critchley. Ele dizia “temos de ficar de fora e pressionar o poder para que seja
um pouco melhor etc.”. Penso que se esse for o caso, então não somos nada,
então abandonamos a perspectiva radical. No entanto, a pergunta básica é esta:
o sistema capitalista global está aí para ficar ou nós ainda acreditamos na
existência de um antagonismo que, de uma forma ou de outra, torna a mudança
necessária? Nada pra mim é imutável — as coisas já estão mudando
loucamente, estamos no meio da mudança.
[Rogério] Fofoca filosófica: em O ano em que sonhamos
perigosamente, você disse que o fist-fucking era a prática
sexual predileta de Foucault. De onde vem isso?
Sim, li isso em um
livro que ia bem contra Foucault… Esqueci o nome do autor, um idiota da New
School for Social Research. Havia alguns rumores de que… não me importa, não
acredito neles, mas a ideia é que quando Foucault soube que tinha Aids, ele
quis ter sexo promíscuo com o máximo de pessoas possível, já que ia morrer. E
esse sujeito diz que esse tipo de sexo era o que mais fascinava Foucault quando
ele estava com 42-3 anos em San Francisco, ensinando em Berkeley.
Sou muito romântico
nesse sentido, penso como Badiou. Acho que sexo sem amor, além de não ser
subversivo, encaixa-se muito bem na constelação ideológica de hoje. Acho que em
muito pouco tempo o amor e a paixão se tornarão um pouco subversivos. Acho
mesmo que sexo sem amor encaixa-se perfeitamente no foco de subjetividade de
hoje, não há nada de subversivo nele.
[Rogério] E no caso das mulheres, elas podem mesmo pensar para além da
prisão do mito do eterno feminino? Refiro-me aqui a Simone de Beauvoir.
Sim, concordo com ela porque o eterno feminino é um mito estritamente
masculino. Lacan confirma isso quando diz que — é assim que interpreto
aquela frase maravilhosa e enigmática dele — a Mulher, La femme, é um dos Nomes-do-Pai. Essa ideia de que por
trás da subjetividade feminina, frágil e histérica, existe uma mulher
primordial, isso não diz respeito às mulheres, é um mito masculino.
Mas aí chegamos a outro problema lacaniano. Muitas pessoas discordam da
minha leitura do pas tout, o não-Todo. As pessoas
tendem a interpretá-lo no sentido de que o homem é todo na ordem simbólica
enquanto existe uma parte da mulher que resiste a essa ordem simbólica, que a
mulher só está presa parcialmente nessa ordem simbólica. Para mim essa leitura
é totalmente equivocada, vejo exatamente o oposto — a ideia de exceção, de
que parte da mulher não está presa na ordem simbólica, é precisamente uma
posição masculina. A mulher é não-Toda justamente porque ela está tão inteira
dentro da ordem simbólica que não há exceção a partir da qual ela possa
totalizar sua posição. Infelizmente, a leitura predominante baseia-se muito em
algumas passagens do Mais, ainda. Quando
Lacan fala de Santa Tereza, por exemplo — que a mulher goza, que ela não
sabe o quê, mas simplesmente, sem palavras, goza.
É interessante
pensarmos em Santa Tereza nesse sentido. Se há uma pessoa que não existiu fora
da ordem simbólica, ela é Santa Tereza. Ela escrevia o tempo inteiro, é uma
pessoa de escrita histérica. Essa é a posição feminina, não esse tipo de mãe
primordial.
Mas quem propôs a noção de ewig-Weiblichen,
eterno feminino? A pessoa mais asquerosa da história da literatura, Goethe.
Está no último verso de Fausto. Tudo bem,
não serei tão radical e dizer que nada presta em Goethe, mas ele representa o
tipo de saber que eu detesto. Há biografias recentes que mostram como ele
delatava os amigos e era cruel e extremista. Não foi o tipo de intelectual que
participa do governo local com o príncipe para fazer algo de bom. Ele era o
linha-dura dentro do governo — convenceu o príncipe a prender mais
pessoas, a exercer um controle maior etc. Pra mim, a Alemanha teve outros
sujeitos interessantes naquela época, como Heinrich Von Kleist, por exemplo,
não Goethe.
[Rogério] Gosto muito do Kleist, sempre volto a um texto dele, Sobre
o teatro de marionetes, sabe?
Sim, Kleist é um gênio! Não só as narrativas, mas também algumas peças
como Príncipe de Hamburgo ou Pentesileia. Ele escreveu duas coisas que considero
maravilhosas, esse ensaio curto que você mencionou sobre as marionetes e outro
texto chamado Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no
discurso, no qual ele diz, de uma maneira bem lacaniana, como nossos
maiores pensamentos surgem quando queremos dizer algo, mas somos levados pelo
erro. Há toda uma teoria de como dizemos uma coisa, dizemos demais, depois não
sabemos o que queríamos dizer até que tentamos inventar uma coisa desse jeito
etc. É uma teoria maravilhosa, incrível mesmo.
[Rogério] Falando sobre linguagem, então. Você costuma conversar com
seus tradutores? Como pensa a questão da tradução?
Se tenho uma coisa importante a dizer, ela deve sobreviver à passagem por
uma língua estrangeira. Não acredito na fórmula de que algo só possa ser dito
na nossa própria língua. Quase nunca
converso. Mas o verdadeiro horror pra mim é a China. Eles já traduziram cerca
de dez livros meus para o chinês, e amigos da minha confiança me disseram: “se
quiser continuar dormindo bem, não queira saber dessas traduções”. Soube que
são traduções descritivas péssimas, que deturpam totalmente o que eu disse,
tornam passagens ridículas etc.
Sobre a tradução, acho
que posso dizer sobre a minha relação com línguas estrangeiras. Acho que há 25
anos escrevo quase exclusivamente, com exceção de declarações políticas, em
inglês. E gosto do inglês justamente por ser uma língua que me força a ser um
pouco mais disciplinado comigo mesmo, um pouco mais preciso, mais conciso etc.
Eu seria muito pior se escrevesse na minha língua. Não me comparo de forma
megalomaníaca com os outros, mas é como Samuel Beckett, que era irlandês, mas
acabou escrevendo em francês.
[Rogério] Ou Nabokov.
Sim, Nabokov, Joseph
Conrad, eu gosto deles. Veja só, eis o meu momento anti-heideggeriano.
Heidegger diria que devemos permanecer fiéis às nossas raízes, à nossa língua,
que apenas a língua original é autêntica. Mas eu gosto dessa ideia de quando
Lacan fala sobre o passe no tratamento psicanalítico, de como, para
autentificar a experiência analítica, é preciso de dois idiotas capazes de
transferi-la para o expectador ou algo do tipo — é a ideia de que sua
mensagem tem de sobreviver a essa passagem pelo conhecimento comum de dois
idiotas que a relatam. O mesmo acontece comigo: se tenho uma coisa importante a
dizer, ela deve sobreviver à passagem por uma língua estrangeira. Não acredito
na fórmula de que exista algo que só possa ser dito na própria língua. É por
isso, por exemplo, que nunca tive esse fascínio de Heidegger pela língua grega.
Eu gosto de latim por ser uma língua mais externa, mecânica etc.
Por conta do meu
posicionamento geral, o mesmo vale para os grandes escritores. Acho que os
maiores escritores, ou artistas compositores, são aqueles que não estão
limitados ao seu momento ou contexto histórico.
Vejamos Shakespeare. É claro, para entender o que ele de fato quis dizer, é
preciso conhecer toda a situação da Inglaterra, mas o que há de especial em
Shakespeare é que podemos descontextualizá-lo totalmente, retirá-lo de seu
contexto, reinventá-lo — e sim, por isso gosto dessas versões modernas da
obra dele, como o último Coriolanus, que
Ralph Fiennes adaptou para o cinema. Sinto o mesmo com as óperas de Wagner, por
exemplo.
[Bernardo] Mas como você vê a questão da linearidade das obras traduzidas
como um todo? Como acha que pode ser mantida uma unidade de estilo e
terminologia em outra língua com uma obra tão vasta quanto a sua?
Bem, depois de ter
péssimas experiências com alguns tradutores (não de países latinos), adotei a
postura da completa ignorância para não ter dor de cabeça: prefiro não saber o
que acontece com as traduções das minhas obras, se são fiéis ou não etc. Mas se
eu tivesse de escolher uma solução, preferiria definitivamente que meus livros
fossem traduzidos por uma única pessoa. Não acredito no diálogo entre
tradutores do mesmo autor.
[Rogério] Você conhece literatura brasileira?
Infelizmente sou muito limitado ainda nesse campo. Mas gosto, por
exemplo, do Manuel Puig, que não é brasileiro, mas teve uma relação especial
com o Brasil. Não gosto tanto do filme, gosto mais do romance, O beijo da mulher aranha, dessa ideia de ir aos
extremos: de um lado o fato brutal da tortura de prisioneiros políticos, e de
outro um mundo maluco de fantasias, gays etc. Eu me lembrei dele porque quem
faz a mulher fatal no cinema é a Sônia Braga. (Por sinal, adoro a sobrinha
dela, Alice Braga.)
E preciso te dizer de um escritor que não gosto muito, conhecido no meu
país, inclusive: Jorge Amado. Não gosto muito desse estilo materialista sexual
ou algo do tipo [risos]. Gosto muito de alguns
filmes brasileiros mais recentes, Cidade de Deus, Central do Brasil, mas o que realmente é bacana e
conhecido na minha região é o maior produto intelectual de exportação do
Brasil, as novelas. Lembra-se de Escrava Isaura? Há
30 anos, essa novela foi algo totalmente mítico no meu país, ainda sob regime
comunista; a atriz principal visitou Liubliana. Acreditou-se que talvez alguns
fãs se interessariam, então publicaram no jornal o nome do hotel em que ela
estava hospedada. Foi uma loucura completa, mais de cem pessoas se juntaram na
porta do hotel. Entende como pra mim é errado dizer, “Ah, mas isso é
tipicamente do Brasil”? Sim, é claro, mas a genialidade é que as novelas
brasileiras também dão certo em uma sociedade totalmente diferente como a
nossa. Foi maravilhoso ver uma série simples como Escrava Isaurasuperar a audiência das séries
norte-americanas.
Esse é um dos bons
efeitos da globalização. Paradoxalmente, a globalização não quer dizer que, em
termos culturais, como pensam alguns idiotas, todos conseguiremos assistir
Hollywood. Globalização é justamente a possibilidade de países como Brasil
— ou até menores, como Romênia, Coreia do Sul, Irã — terem seu momento
global. Nesse nível, ela é maravilhosa.
E outra coisa, eu levo
muito a sério essa questão das novelas, não estou fazendo piada de uma maneira
pós-moderna. A tradição das novelas brasileiras é uma contribuição genuína para
a cultura mundial. É única a maneira como vocês pegaram uma coisa aparentemente
monopolizada pela TV norte-americana, Hollywood ou pela Europa e deram a ela um
novo sentido. Elas ainda fazem sucesso?
[Rogério] Muito sucesso. Recentemente, por exemplo, o país inteiro se
mobilizou por conta de Avenida Brasil, cujo tema era vingança.
Ah, vingança, eu adoro o tema! Um exemplo patético: se eu mato sua esposa,
você primeiro deve me matar e só depois me perdoar. [risos]
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Rogério Bettoni é filósofo e tradutor. De Slavoj Žižek, traduziu, entre
outros, O ano em que sonhamos perigosamente e Mais que nada (no prelo), ambos pela
Editora Boitempo. Editor do Umbigo das Coisas.
Bernardo Malamut é psicólogo e psicanalista.
Editor do Umbigo das Coisas.
Regina Miraaz é jornalista e socióloga.
Membro do conselho editorial e colaboradora do
Umbigo das Coisas.